Ataque ao capitalismo
Os sem-terra e as grandes empresas
Por Luiz Carlos da Fonseca
EXAME. - Tradicionalmente, a cada mes de abril o Movimento dos
Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) dedica-se a uma sucessao de
invasões de fazendas e prédios públicos. É uma estratégia que tem se
repetido nos últimos 11 anos, no chamado 'Abril Vermelho', como forma
de relembrar o assassinato de 19 militantes em Eldorado dos Carajás,
município do sul do Pará, em um confronto com policiais militares em
1996. Neste ano, os sem-terra apostaram em um novo formato de
manifestacao para insuflar ânimo e garantir mais impacto ao 'Abril
Vermelho'. O palco escolhido foi a Estrada de Ferro Carajás, no
município de Parauapebas, próximo da regiao onde os militantes foram
mortos.
O resultado da nova estratégia é a foto que ilustra a abertura desta
reportagem: um grupo de sem-terra à frente de uma locomotiva da Vale,
imobilizada em meio a um protesto contra o capitalismo, a iniciativa
privada e companhias que representam o 'neoliberalismo e a
globalizacao'. A reacao do governo ao golpe de imagem do MST é nula.
Mas as empresas, cada vez mais acuadas por ameacas desse tipo,
comecaram a reagir. Na invasao da Estrada de Ferro Carajás, a Vale
acompanhou cada detalhe da mobilizacao dos sem-terra e deslocou até
mesmo um helicóptero com um fotógrafo e um cinegrafista a bordo para
registrar o protesto minuto a minuto, com o objetivo de identificar
abusos cometidos pelos manifestantes.
A reacao da Vale mostra uma nova conduta por parte das empresas com
relacao ao MST: elas decidiram sair da posicao de alvo e
contra-atacar. Para isso, tem contratado desde espiões infiltrados no
movimento até advogados, sociólogos e analistas políticos que conhecam
o modus operandi do movimento. A Vale é a empresa que está mais
avancada nesse processo. A mineradora sofreu nove invasões nos últimos
oito meses, e todas degeneraram em conflitos entre os sem-terra e
funcionários.
Numa dessas acões, na Estrada de Ferro Vitória - Minas, um operador de
locomotiva de 63 anos foi tomado como refém por 12 horas. Noutra, os
sem-terra interditaram a Estrada de Ferro Carajás e interromperam o
fornecimento de minério por um dia. O prejuízo com as acões do MST foi
estimado em 20 milhões de reais. O movimento, frente ao esgotamento de
sua causa em prol da reforma agrária, partiu para uma campanha aberta
contra a empresa e para defender sua reestatizacao.
'A Vale é campea em multas e agressões ao meio ambiente. Isso nao é um
problema só de reforma agrária, mas da humanidade e do povo
brasileiro',
diz Gilmar Mauro, um dos coordenadores do movimento. A reacao da Vale
tem sido dura. Seu presidente, Roger Agnelli, afirmou publicamente que
as acões do MST eram 'atos criminosos praticados por bandidos, que nao
respeitam a lei nem a democracia'. Ciente dos riscos que corria
durante o 'Abril Vermelho', a Vale conseguiu, na Justica do Pará, uma
decisao inédita, obrigando a Uniao e o governo estadual a agir
imediatamente para impedir a ocupacao da Estrada de Ferro Carajás em
caso de invasao.
Só no Pará, seis advogados ficaram de prontidao para acionar a Justica
contra o MST. Mas, escaldada com o freqüente descumprimento dessas
ordens judiciais, a companhia acionou também seu grupo de crise,
sediado no Rio de Janeiro, e mobilizou mais de 100 funcionários em
todo o país para reagir aos sem-terra.
Para o filósofo Denis Rosenfield, professor da Universidade Federal do
Rio Grande do Sul que estuda o MST há oito anos, a adocao de reacões
truculentas contra os sem-terra é um 'equívoco estratégico' para as
empresas. 'Esse tipo de acao desastrada cria mártires para o MST e tem
um efeito bombástico na opiniao pública', diz. O confronto com o
movimento, para o professor, deveria ser feito justamente da forma que
a maioria das empresas tem procurado evitar, ou seja, com a maior
transparencia possível. 'O MST nao tem reivindicacões que as empresas
possam atender. O que eles querem é influenciar a opiniao pública.
Assim, é preciso brigar no mesmo nível', diz Rosenfield. 'Além
disso,
muitos governantes e até mesmo juízes só agem sob pressao.'
Desde o início do ano, Rosenfield já foi chamado para dar palestras
sobre o MST a uma dúzia de empresas e federacões setoriais. 'Os
empresários querem entender o que é o movimento, como ele funciona,
quem sao seus líderes e qual a melhor maneira de reagir.'
Rosenfield diz que a tendencia é que as invasões de áreas de empresas
privadas aumentem nos próximos anos. Agora, se alinham entre os
inimigos dos sem-terra empresas sucroalcooleiras, de pesquisas
agronômicas (como Monsanto e Syngenta), da área de papel e celulose
(Aracruz)
e de mineracao (Vale) -- setores que de certa forma se enquadram
dentro da lógica do movimento.
No entanto, os sem-terra tem ido além e atacado
empresas que nada tem a ver com sua bandeira. É o caso da Ambev, que
teve uma área invadida pela primeira vez neste ano, ao lado de sua
fábrica em Agudos, na regiao de Ribeirao Preto, no interior de San
Pablo. Os sem-terra usaram a estapafúrdia alegacao de que a empresa
polui o aqüífero Guarani, a colossal reserva subterrânea de água que
se estende por boa parte das regiões Sudeste, Sul e Centro-Oeste do
Brasil.
Oficialmente, a Ambev considerou o protesto um fato isolado sem
maiores conseqüencias. 'Esse é um tipo de acao que só vai se
radicalizar daqui para a frente', diz Rosenfield. 'Ainda falta
compreensao política às empresas para perceber que a melhor defesa,
nesses casos, é a reacao.' É o que resta quando o Estado se exime de
exercer sua funcao de assegurar direitos básicos de pessoas e de
empresas.
Luiz Carlos da Fonseca
é Professor de Seguranca Privada de Brasil. Obrigado!